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segunda-feira

A quem serve o “quanto pior, melhor”?

Algumas forças políticas de esquerda acreditam que o Programa Democrático Popular aprovado pelo PT, em 1986, continua atual. Ele responde aos principais problemas estruturais enfrentados pelo Brasil. Também corretamente, avaliam que esse não foi o programa adotado no governo Lula. Mas, estranhamente, ao invés de avaliaram as condições objetivas que levaram o PT a aplicar um programa tático diferente, ou "rebaixado", como costumam dizer, preferem lamentar-se, ao mesmo tempo em que acusam ao PT de haver abandonado seu programa estratégico.

Alguns se dão conta de que, para a maioria do povo brasileiro, as realizações do governo Lula são vistas e sentidas como avanços e conquistas. Mas, ao invés de tomarem isso como possibilidade real para conquistas ainda maiores, mesmo que lentas, preferem se lastimar de que essa maioria popular não tenha percebido a necessidade de retomar a luta por reformas estruturais na sociedade brasileira.

Assim, reconhecem que a esquerda está diante de um desafio diferente dos que enfrentou no passado. Mas, além de não considerarem isso como um desafio teórico e prático, o tomam apenas como um desafio organizativo. E, ao invés de partirem dos avanços e conquistas percebidos pela maioria popular, lastimam-se de que tais avanços e conquistas foram pequenos, e buscam isolar-se em posições pretensamente revolucionárias.

Não conseguem entender que a caminhada pela via institucional é, em primeiro lugar, uma enorme conquista do povo brasileiro. Pela primeira vez na história brasileira as classes dominantes se viram na contingência de permitir que não apenas políticos populares, mas também socialistas e comunistas, ocupassem postos no governo central e governos estaduais e municipais. Isto pode parecer pouco para os que não viveram a ditadura, nem os períodos anteriores de repressão política e clandestinidade. Mas a ciência histórica demonstra facilmente que foi um avanço considerável.

Essa conquista, por outro lado, acarreta problemas práticos, teóricos e organizativos de monta para as grandes massas do povo e para as forças de esquerda. Ela pode alimentar, tanto entre essas massas, quanto entre militantes da esquerda, a ilusão de que a burguesia se acomodará e jamais tentará uma saída não-institucional para a perda parcial de um dos aparatos do Estado. Essa conquista também pode nutrir uma esperança desmesurada de que seja possível realizar todas as reformas estruturais pela via institucional, e que a burguesia concordará com essa pretensão.

O desafio para a esquerda, diante disso, não consiste apenas, como alguns pensam, em fazer propaganda e agitação das questões programáticas contidas no Programa Democrático Popular do PT. Embora isto seja importante, o grande problema consiste em fazer com que as grandes massas populares compreendam que a via eleitoral e os avanços positivos do governo Lula foram uma conquista delas. E que só elas, mobilizadas e organizadas, podem garantir não só a manutenção desses avanços, como novas conquistas.

Portanto, esse processo "reformista" e "rebaixado" precisa ser uma importante escola de aprendizado para as grandes massas do povo. É um erro crasso negar-lhe essas conquistas e esse aprendizado, do mesmo modo que é um erro crasso não alertá-las para as tentativas desestabilizadoras de seus inimigos. Nessas condições, a esquerda jamais pode tomar a iniciativa de desqualificar a experiência da via eleitoral e os avanços do governo Lula. Esta é uma missão suja que deve ser deixada a cargo da burguesia tentar.

Tudo isso exige que a esquerda esteja junto com as massas populares nessa "experiência". Sem vivenciar com elas seus aspectos positivos e negativos, e procurar tirar as lições desse processo real, será muito difícil a qualquer setor da esquerda apresentar-se como alternativa para o que quer que seja. Não é por acaso que as forças de esquerda que se negam, ou são contra, participar ativamente da experiência Lula, mesmo não estando no governo, sejam residuais e impotentes diante das tendências populares.

Pretender impor às massas populares um projeto que, por mais correto que seja teoricamente, não faça parte do horizonte atual da experiência de luta e da consciência daquelas massas, só pode levar tais forças a falarem apenas para si próprias. Algo idêntico ocorre agora com os setores que concordam com o caráter plebiscitário das eleições deste ano, mas decidiram omitir-se no primeiro turno. Por quê? Porque o plebiscito, segundo eles, será um embate entre um "projeto rebaixado" e o "retrocesso".

Este foi, em termos relativos, o argumento que levou os comunistas alemães a não se aliarem aos social-democratas no início dos anos 1930, permitindo a vitória eleitoral dos nacional-socialistas, ou nazistas. A analogia é válida para alertar que o argumento de não escolher um "projeto rebaixado", quando se está frente a um "retrocesso", pode ser extremamente pernicioso. Estamos, portanto, diante de uma questão tática que pode ter implicações sérias nas perspectivas estratégicas.

Alguns talvez pensem que, com isso, a situação vai piorar e as massas irão se mobilizar. Provavelmente, jamais vivenciaram derrotas profundas e o que isso representa de demora para a retomada da luta popular. Para derrotar o Estado Novo getulista foram necessários quase 10 anos, e mesmo assim num contexto histórico de guerra mundial. Para dar fim à ditadura militar e realizar uma transição pactuada foram necessários 20 anos. Será que vamos ter que reaprender que o "quanto pior, melhor" não nos serve?


Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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