Por Uri Avnery(31/03/11)
O parlamento de Israel aprovou duas leis racistas, dirigidas contra os seus cidadãos árabes. A primeira torna possível anular a cidadania de pessoas acusadas de crimes contra a segurança do Estado. A segunda permite que comunidades de menos de 400 famílias nomeiem “comitês de admissão” que podem expulsar “pessoas indesejáveis”.
Numa rara sessão que foi pela noite adentro, o Knesset [parlamento de Israel] aprovou finalmente duas chocantes leis racistas. Ambas são claramente dirigidas contra os cidadãos árabes de Israel, que representam um quinto da população.
A primeira torna possível anular a cidadania de pessoas consideradas culpadas de crimes contra a segurança do Estado. Israel orgulha-se de ter uma grande variedade de leis desse tipo. Anular a cidadania por esses motivos é contrário à lei e às convenções internacionais.
A segunda é mais sofisticada. Permite que comunidades de menos de 400 famílias nomeiem “comités de admissão” que podem impedir de viver nessas comunidades pessoas indesejáveis. Muito astutamente, proíbe especificamente a rejeição de candidatos devido a raça, religião etc. –, mas esse parágrafo equivale a um piscar de olhos. Um candidato árabe será simplesmente rejeitado por ter muitos filhos ou pela falta do serviço militar.
A maioria dos deputados não se deu ao trabalho de aparecer na votação. Afinal, já era tarde e eles também têm famílias. Quem sabe, alguns podem até ter tido vergonha de votar.
Mas muito pior é um terceiro diploma que chega à fase final dentro de poucas semanas: a lei para proibir o boicote aos colonatos.
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Desde a sua primeira versão, este projeto foi de certa forma sendo refinado.
Tal como está agora, a lei punirá qualquer pessoa ou associação que apele publicamente a um boicote a Israel – econômico, acadêmico ou cultural. “Israel”, de acordo com esta lei, significa qualquer pessoa ou empresa israelense, em Israel ou em qualquer território controlado por Israel. Pondo a questão em termos simples: é tudo sobre os colonatos. E não só sobre o boicote aos produtos dos colonatos, que foi iniciado pela Gush Shalom há uns 13 anos, mas também sobre a recente recusa dos atores de atuar no colonato de Ariel e do apelo de acadêmicos a não apoiar o chamado Centro Universitário que lá existe. Também se aplica, naturalmente, a qualquer apelo ao boicote a uma universidade ou a uma empresa comercial israelense.
Esta é uma peça fundamentalmente falha de legislação: é anti-democrática, discriminatória, anexionista, e totalmente inconstitucional.
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Todos têm o direito de comprar ou não comprar o que desejarem, de quem escolherem. Isso é tão óbvio que não precisa de confirmação. Faz parte do direito à livre expressão garantido por qualquer Constituição que se preze, e é um elemento essencial de uma economia de livre mercado.
Eu posso comprar na loja da esquina porque gosto do proprietário, e evitar o supermercado do outro lado da rua, que explora os seus empregados. As empresas gastam grandes quantias para me convencer a comprar os seus produtos em detrimento de outros.
E quanto às campanhas ideologicamente motivadas? Anos atrás, durante uma visita a Nova York, convenceram-me a não comprar uvas produzidas na Califórnia, porque os proprietários oprimiam os trabalhadores imigrantes mexicanos. Este boicote durou um longo tempo e foi – se bem me lembro – bem-sucedido. Ninguém se atreveu a sugerir que boicotes como este deviam ser proibidos.
Aqui em Israel, os rabinos de muitas comunidades regularmente colam cartazes convocando o seu rebanho a não comprar em certas lojas, que eles acreditam não serem kosher, ou não serem suficientemente kosher. Esses apelos são comuns.
Tais informações são totalmente compatíveis com os direitos humanos. Os cidadãos para quem a carne de porco é uma abominação, têm o direito de saber quais lojas vendem carne de porco e quais não. Tanto quanto eu saiba, ninguém em Israel jamais contestou este direito.
Mais cedo ou mais tarde, alguns grupos anti-religiosos vão publicar apelos ao boicote às lojas kosher, que pagam aos rabinos – alguns deles, os mais intolerantes do seu tipo – taxas pesadas pelos seus certificados. Eles suustentam um vasto establishment religioso que defende abertamente transformar Israel num “estado Halakha” – o equivalente judaico de um “estado sharia” muçulmano. Muitos milhares de supervisores Kashrut e miríades de outros funcionários religiosos são pagos pelo público em grande parte secular.
Então e que tal um boicote anti-rabinos? Dificilmente pode ser proibido, já que os religiosos e os anti-religioso têm garantidos direitos iguais.
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Assim, parece que nem todos os boicotes por motivos ideológicos estão errados. Nem os promotores desta lei em particular – racistas da escola Lieberman, direitistas do Likud e “centristas” do Kadima – afirmam isso. Para eles, boicotes só são errados se forem contra as políticas nacionalistas, de anexação, deste governo.
Isso é declarado explicitamente na própria lei. Boicotes são ilegais se forem dirigidas contra o Estado de Israel – não são, por exemplo, se forem promovidos pelo Estado de Israel contra algum outro estado. Nenhum israelense no seu perfeito juízo condenaria retroativamente o boicote imposto pela comunidade judaica mundial à Alemanha logo depois de os nazistas chegarem ao poder – um boicote que serviu de pretexto para Josef Goebbels quando desencadeou, em 1 de Abril de 1933, o primeiro boicote nazi anti-semita (“Deutsche wehrt euch! nicht bei Juden Kauft!”)
Nem qualquer autêntico sionista poderia considerar erradas as medidas de boicote aprovadas pelo Congresso, sob pressão intensa de judeus, contra a antiga União Soviética, para romper as barreiras à imigração judaica livre. Estas medidas tiveram um enorme sucesso.
Não menos bem-sucedido foi o boicote mundial contra o regime do Apartheid na África do Sul – um boicote calorosamente saudado pelo movimento de libertação sul-africano, apesar de também ter prejudicado os trabalhadores africanos empregados pelos empresários brancos boicotados (um argumento agora repetido pelos colonos israelenses, que exploram trabalhadores palestinos com salários de fome).
Assim, os boicotes políticos não são errados, desde que sejam dirigidos contra os outros. É a velha “moral hotentote” da tradição colonial – “se eu roubar a sua vaca, estou certo. Se você rouba a minha vaca, está errado.”
Os direitistas podem mobilizar-se contra as organizações de esquerda. A esquerda não pode mobilizar-se contra as organizações de direita. É tão simples como isso.
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Mas a lei não só é anti-democrática e discriminatória, também é flagrantemente anexionista.
Por um simples truque semântico, em menos de uma frase, os legisladores fazem o que os sucessivos governos israelenses não se atreveram a fazer: anexam a Israel os territórios palestinos ocupados.
Ou talvez seja o contrário: estão os colonos anexando Israel? A palavra “colonatos” não aparece no texto. Deus nos livre. Assim como a palavra “árabes” não aparece em nenhuma das outras leis.
Em vez disso, o texto simplesmente determina que os apelos ao boicote a Israel, que são proibidos pela lei, incluem o boicote a instituições e empresas israelenses em todos os territórios controlados por Israel. Isto inclui, naturalmente, a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e as Colinas do Golan.
Este é o cerne da questão. Tudo o resto é camuflagem.
Os promotores da lei querem silenciar o nosso apelo ao boicote aos colonatos, que está a ganhar força em todo o mundo.
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A ironia da questão é que eles podem conseguir o exato oposto.
Quando começamos o boicote, o nosso objetivo declarado era traçar uma linha divisória clara entre Israel nas suas fronteiras reconhecidas – a Linha Verde – e os colonatos. Não defendemos um boicote ao Estado de Israel, que, acreditamos, envia a mensagem errada e empurra o centro israelense os braços abertos da extrema-direita (“O mundo inteiro está contra nós!”). Consideramos que um boicote aos colonatos ajuda a recolocar a Linha Verde e faz uma clara distinção.
Esta lei faz exatamente o oposto. Ao varrer a linha entre o Estado de Israel e os colonatos, faz o jogo daqueles que chamam ao boicote a Israel, na crença (equivocada, na minha opinião) que um estado unificado de Apartheid abriria o caminho para um futuro democrático.
Recentemente, a loucura da lei foi demonstrada por um juiz francês, em Grenoble, devido a um incidente que envolveu uma empresa israelense quase monopolista de exportação de produtos agrícolas, a Agrexco. O juiz suspeitava que a empresa estava envolvida em fraude, porque os produtos dos colonatos eram falsamente declarados como provenientes de Israel. Isto poderia ser também fraude, porque as exportações de Israel para a Europa têm direito a tratamento preferencial, benefício de que não gozam os produtos dos colonatos.
Incidentes como este estão ocorrendo cada vez mais frequentemente em vários países europeus. Esta lei fará com que eles se multipliquem.
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Na versão original, os boicotadores teriam cometido um crime e seriam multados. Isso ter-nos-ia causado grande alegria, porque a nossa recusa de pagar as multas e a consequente prisão teria dramatizado a questão.
Essa cláusula foi agora omitida. Mas cada empresa nos colonatos e, na verdade, cada colono que se sente ferido pelo boicote pode processar – por danos ilimitados – qualquer grupo que apele ao boicote e qualquer pessoa ligada a esse apelo. Como os colonos estão muito bem organizados e detêm fundos ilimitados, fornecidos por todo o tipo de proprietários de casinos e de comerciantes do sexo, podem entrar com milhares de processos e praticamente paralisar o movimento de boicote. Este é, evidentemente, o seu objectivo.
A luta está longe do fim. Após a promulgação da lei, vamos apelar ao Supremo Tribunal para anulá-la, por ser contrária aos princípios constitucionais fundamentais de Israel e ser contrária aos direitos humanos básicos.
Como Menachem Begin costumava dizer: “Ainda há juízes em Jerusalém!”
Há?
Retirado do site de Gush Shalom
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Uri Avnery é jornalista, membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).
Fonte: Carta Maior
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