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#BlogNemComento - Marx e a sociologia

Ricardo Musse
Ilustração: André Toma

Na investigação da relação de Marx com a sociologia, não há como subestimar a importância do movimento crítico. Ao longo de toda sua obra, o exame das diversas teorias sociais prevalecentes desemboca, com base no exercício de uma crítica ao mesmo tempo imanente e transcendente, na delimitação de um território próprio denominado pela posteridade de “materialismo histórico”, “sociologia marxista” ou mesmo “sociologia ou teoria crítica”.

Durante o inverno de 1845-1846, refugiados em Bruxelas, Marx e Engels redigiram A Ideologia Alemã. O texto, no entanto, por uma série de motivos, não foi editado e permaneceu assim durante o período em que eles viveram. Numa breve apresentação de sua trajetória intelectual, no Prefácio ao livro Para a Crítica da Economia Política (1859), Marx comenta o manuscrito, destacando que “tratava-se de acertar contas com nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana (…) Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.

Embora o contexto da referência permita inferir que o manuscrito continha um esboço da teoria ali exposta de forma sintética, Marx, fiel ao seu estilo negativo, prescinde dessa afirmação. A interpretação apenas literal dessas frases, predominante entre as duas primeiras gerações de marxistas, corroborou a tese de que se tratava de um momento superado de um itinerário que transitara da filosofia à economia política. Essa hipótese, no entanto, foi plenamente desmentida pela publicação do primeiro volume do livro, em 1926 (o segundo foi editado em 1932). As ideias apresentadas nesse Prefácio, e que se tornaram uma espécie de resumo oficial da teoria marxista da história, retomam quase que literalmente o texto do manuscrito de 1845-1846.

A Ideologia Alemã tornou-se desde então um texto essencial do corpus marxista. Nela delineia-se pela primeira vez de forma nítida o que pode ser considerado o programa do materialismo histórico, gestado por meio de uma crítica incisiva dirigida simultaneamente à filosofia, à teoria política, à historiografia, à economia política, à teoria social etc.

A atividade prática humana
A autocompreensão à qual Marx se refere surgiu, em grande medida, de um acerto de contas com Ludwig Feuerbach, o mais destacado dos filósofos pós-hegelianos. Nos 11 parágrafos das famosas “Teses sobre Feuerbach”, escritas provavelmente em maio ou junho de 1845 – portanto, alguns meses antes do início da redação de A Ideologia Alemã –, Marx, que havia muito já não era idealista, ao contestar o caráter passivo, abstrato e não histórico do materialismo (incluindo o de Feuerbach), destaca que a sensibilidade, a história e a vida social resultam da atividade prática humana.

Um ponto decisivo da divergência de Marx ante Feuerbach consiste na determinação do conceito de “alienação”. No quarto parágrafo, Marx afirma: “a autoalienação religiosa, o desdobramento do mundo em um mundo religioso e um mundo mundano (…) só pode se explicar pela autodilaceração e pela autocontradição desse fundamento mundano”. Desse modo, a questão da alienação, e assim da própria situa-
ção do homem, é deslocada de “um reino autônomo nas nuvens” ou da compreensão do indivíduo singular para a vida efetiva, que se desenrola como um nexo de relações sociais.

Por conseguinte, a tarefa mais urgente e impostergável para Marx, naquele momento, era delinear uma nova concepção, materialista, da história e da sociedade. Teoria essa que, não custa repetir, nasceu da convivência com e da crítica à filosofia pós-hegeliana, mas que, de certo modo, pode ser estendida a grande parte da tradição cultural e intelectual burguesa.

A estratégia de Marx e Engels para submeter à crítica os jovens hegelianos, evitando o risco de recair no jogo especular de uma crítica da “filosofia crítica”, passa pela remodelação do conceito de “ideologia” – concebido como um descompasso entre o que os indivíduos, grupos e sociedades imaginam ser e o que efetivamente são.

O esforço crítico vincula-se assim ao desenvolvimento de uma teoria apta a compreender os indivíduos efetivos em suas ações concretas, o que aponta para a necessidade de conhecer suas condições materiais de vida e as relações sociais aí engendradas. Esse programa, ao qual Marx se ateve ao longo de sua trajetória, foi levado adiante submetendo à crítica – imanente e transcendente – aquelas que são comumente apresentadas como as três fontes do pensamento marxista: a teoria social alemã, tal como configurada no idealismo alemão e no movimento dos jovens hegelianos; a teoria social inglesa, consubstanciada na economia política; e as vertentes da sociologia francesa iniciadas por Saint-Simon, com seus desdobramentos no socialismo utópico de Fourier e Proudhon.

Embora, em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esbocem alguns traços da aplicação desse programa à história universal, o livro quase não trata do mundo moderno. O levantamento das principais determinações da sociedade capitalista tornou-se imprescindível durante a redação do Manifesto do Partido Comunista (1848).Para compreender o momento histórico, Marx expõe a história da gênese e do desenvolvimento do mercado mundial, assim como dos conflitos sociais e das oposições de classe que moldam esse cenário, delineando os principais pontos da sociologia marxista, numa exposição concisa das coordenadas econômicas, sociais, políticas e culturais do mundo moderno.

O Manifesto pode ser lido então como uma espécie de “dialética da modernidade”, salientando a contradição entre o dinamismo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas (destacado na metáfora “tudo que é sólido desmancha no ar”) e a estática inerente às relações de produção, que reproduzem a cada momento as formas desiguais de apropriação da riqueza e de dominação social.

Marx apresenta o Manifesto como uma autoexposição do comunismo. Conjugado a essa tentativa de exposição teórica das premissas de um movimento político que mal entrara em cena e já invocava para si o papel de protagonista, Marx compôs um diagnóstico da modernidade que esquematiza, em linhas gerais, tópicos que só serão desenvolvidos detalhadamente em obras posteriores, particularmente no conjunto de textos projetados pelo próprio Marx como uma “crítica da economia política” e cuja formulação mais acabada consiste em O Capital.

Luta de classes
Dito em termos drásticos, de A Ideologia Alemã, bem como de seus inúmeros estudos sobre história, Marx tomou como pressuposto no Manifesto apenas um esquema mínimo, a tese de que “a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes”. Trata-se, portanto, de trazer para o centro do relato da história humana o conflito, a “luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta”, entre oprimidos e opressores.

Apesar do tom panfletário, inerente a seus objetivos práticos, políticos e pedagógicos, o Manifesto mantém a postura crítica em relação à filosofia da história de A Ideologia Alemã. Em lugar de estabelecer uma teleologia para o desenvolvimento geral da espécie humana, Marx, analisando em bloco o destino do mundo moderno, apenas aponta duas tendências, extraídas da observação do passado histórico, procurando evitar recair na ideia de uma necessidade inerente ao espírito ou em alguma forma de determinismo: “uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou uma derrocada comum das classes em luta”.

Na descrição de Marx, a “moderna sociedade burguesa não aboliu os antagonismos de classe”, mas antes colocou novas classes, novas condições de opressão, novas formas e estruturas de luta, sintetizadas no conflito entre burguesia e proletariado.

Marx associa o desenvolvimento histórico-social da burguesia, em especial sua constituição como força política, a uma série de acontecimentos que marcaram a gênese e os desdobramentos do mundo moderno. Desse modo, essa classe é apresentada como o produto de um longo processo, de uma série de revoluções nos meios de produção, transportes e comunicação, por meio do qual ela se desenvolve, economicamente, multiplicando seus capitais e, politicamente, empurrando para segundo plano as demais classes opressoras. Marx adverte assim que, ainda que as demais classes opressoras não sejam suprimidas, doravante quem dá as cartas nos rumos do desenvolvimento histórico e na luta política é a burguesia.

No Manifesto, o mundo burguês é compreendido como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica somente ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incessante destruição de toda a estrutura de produção existente em determinado momento, subverte inclusive o cenário histórico e político.

Essa dinâmica, característica da modernidade, é apresentada e desdobrada no Manifesto sob a forma de um feixe de expansões que ocorrem simultaneamente, em direções e sobre domínios diferenciados. A descrição do papel “eminentemente revolucionário” desempenhado pela burguesia na história moderna pode ser concebida como uma história dos movimentos do agente histórico dessa expansão, o que explica, entre outras coisas, a forte carga irônica dessas passagens, muitas vezes interpretadas erroneamente como uma apologia da burguesia.

Marx descreve os movimentos segundo os quais o capitalismo extravasa o campo das relações puramente econômicas, espraiando-se para outras esferas da vida social. Esse processo caracteriza-se por uma inaudita mercantilização e reificação de todo o domínio social, atingindo inclusive o âmago da subjetividade.

Mas, ao mesmo tempo em que salienta o predomínio das relações mercantis e da reificação sobre o conjunto da vida social, Marx detecta outro movimento expansionista caracterizado pela colonização, ou melhor, pela penetração capitalista sobre áreas e regiões 
econômicas ainda não capitalistas – o que abrange desde áreas do mundo rural, situadas próximo do centro do capitalismo, até os territórios pré-capitalistas, situados nos confins do planeta.

Essa expansão, hoje denominada globalização, vincula-se de forma mais estreita, no Manifesto, com a fase do mercado mundial. Por “mercado mundial”, Marx designa tanto uma forma de concentração industrial como o domínio exclusivo do poder pela burguesia (na época do Manifesto, o recém-implantado Estado constitucional representativo).

Essas duas “expansões” são assinaladas, ao mesmo tempo, como expedientes a que a burguesia recorre para tentar superar as crises do capitalismo. Marx indaga: “Por quais meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados”.

A frase “exploração metódica dos antigos mercados”, outra vertente da expansão capitalista, alude à reformulação dos meios e das formas de produção, o que abrange desde a tecnologia empregada na produção até as formas de manejo da mão de obra no interior do processo produtivo. Esse processo, no entanto, não pode ser levado adiante sem a derrubada de obstáculos (jurídicos, culturais etc.) e sem uma intensificação da padronização específica da economia capitalista sobre as demais esferas do mundo social.

O proletariado
A exposição do proletariado, no decorrer do Manifesto, embora possa ser remetida ao quadro histórico-econômico próprio do mundo moderno, não privilegia as mediações econômicas, mas antes a história de sua formação política. De modo geral, Marx salienta que, na mesma medida em que a burguesia, ou melhor, o capital se desdobra, também o proletariado se desenvolve.

No Manifesto, Marx determina, de modo genérico, o proletariado como aqueles que “só subsistem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital”. Esse modo de compreender a inserção social do proletariado destaca a submissão do mundo do trabalho à lógica econômica do mercado: os “operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e, por isso, igualmente expostos às vicissitudes da concorrência e às oscilações do mercado”.

A dinâmica da expansão, própria do capitalismo, afeta o proletariado no âmago da sua inserção (e integração) social, como força de trabalho, consolidando-se como um dos principais obstáculos à sua organização e formação política. Esse processo foi destacado por Marx como uma forma de reificação típica da situação do trabalho no capitalismo. Primeiro, o trabalhador perde sua autonomia, pela via da expansão da maquinaria e pela ampliação da divisão de trabalho no interior do processo de produção, tornando-se quase um mero acessório da máquina. Mas, sobretudo, ele encontra-se submetido, no interior da fábrica, ao “despotismo” do capital: “Eles não apenas são servos da classe burguesa, do Estado burguês; diariamente e a cada hora eles são escravizados pela máquina, pelo supervisor e, sobretudo, por cada um dos fabricantes burgueses”.

A formação política do proletariado afigura-se, portanto, como uma forma de superação, seja da alienação própria ao mundo do trabalho, seja dos resultados da incessante concorrência entre os trabalhadores gerada pela recorrente reprodução da mão de obra. Nesse sentido, um dos pressupostos práticos do Manifesto, a tarefa de contribuir para a organização do proletariado em um partido político, não pode ser visto como um objetivo descolado da necessidade de superar esses obstáculos.

Pode-se considerar que a aposta de Marx, recorrente ao longo do Manifesto, atribui ao proletariado a possibilidade de desempenhar na história papel equivalente ao exercido pela burguesia. Vale dizer que, para Marx, a classe operária tem a possibilidade de posicionar-se como agente determinante do destino histórico do mundo moderno.

Esse engajamento da classe operária em um projeto de transformação social não é apresentado como um resultado automático e necessário decorrente das condições econômicas e sociais da sociedade burguesa. Marx adverte que os incessantes esforços para organizar o proletariado em um movimento político são, a cada instante, contrariados pela concorrência entre os próprios operários, bem como pela reificação, condições inerentes a sua situação no capitalismo.

A generalização da forma-mercadoria dificulta não só a afirmação do proletariado como sujeito histórico, mas a própria reflexão acerca dos problemas inscritos no cerne da sociedade capitalista, uma vez que a reificação, originariamente atuante no mundo do trabalho, estende-se para todos os setores da sociedade.

Ricardo Musse é professor do
Departamento de Sociologia da USP

Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/marx-e-a-sociologia/

1 falações!:

Diogo Didier disse...

Vou fazer prova sobre ele na próxima semana!