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terça-feira

#10Dias - Processo irreversível


Correio Braziliense - 21/12/2010


"Abraço"bolivariano entre Lula e Hugo Chávez é parte de uma integração regional que não terá retorno


Se a proximidade da relação entre dois países pode ser medida pela quantidade de visitas trocadas pelos presidentes, a afinidade entre Brasília e Caracas se torna inquestionável. A Venezuela foi o país para o qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez mais visitas oficiais — foram 13 em oito anos —, além de três para participar de fóruns multilaterais. Do outro lado, a frequência por aqui foi ainda maior. Hugo Chávez foi, de longe, o presidente que mais veio ao Brasil durante o governo Lula, somando 20 visitas no período, contra 12 dos presidentes da Colômbia e da Argentina. Para o embaixador venezuelano no Brasil, Maximilien Sanchez, não há como reverter tamanha aproximação no próximo governo brasileiro.

“O primeiro presidente brasileiro que visitou a Venezuela, um vizinho com o qual divide uma grande fronteira, foi em 1979. Perceba como avançamos na última década, e quanto os presidente Chávez e Lula se reuniram, se não em reuniões bilaterais, em reuniões do Mercosul. Creio que esse é um processo irreversível”, arriscou Sanchez, ao conversar com o Correio para a última entrevista da série com os embaixadores de 10 países sobre as expectativas para a gestão de Dilma Rousseff. O jovem embaixador, que assumiu a representação em Brasília com 38 anos e é conhecido pela proximidade com o presidente Chávez, disse que Lula abraçou o ideal bolivariano de integração da América do Sul, mas evitou creditar aos dois líderes a aproximação, tanto bilateral como da região. “Tudo isso é fruto dos seus povos e de seus líderes. Talvez os líderes hoje se pareçam mais com seus povos.”

Sanchez minimizou o impacto das declarações presentes em documentos divulgados recentemente pelo site WikiLeaks. Segundo telegramas originados na embaixada americana em Brasília, o ministro da Defesa, Nelson Jobim teria considerado a Venezuela uma “nova ameaça” para a região, e justificado a criação do Conselho de Defesa da América do Sul como forma de “enquadrar” o regime de Caracas. “É muito difícil opinar sobre especulações”, disse, rechaçando a ideia de que um maior contato do Brasil com os Estados Unidos, no governo Dilma, possa acender um sinal de alerta em Caracas.

Logo após a Assembleia Nacional da Venezuela aprovar o projeto da Lei Habilitante, que permitirá ao presidente governar por decreto nos próximos 18 meses, o embaixador também minimizou os temores de uma centralização cada vez mais excessiva do poder nas mãos de Chávez. “Quem conhece a realidade venezuelana sabe que a principal bandeira do presidente e da Revolução Bolivariana é o aprofundamento da democracia. A Lei Habilitante é um mecanismo contemplado na Constituição precisamente para fazer frente a situações extraordinárias, como é o estado de emergência que o país está vivendo atualmente.”

ENTREVISTA MAXILILIEN SANCHEZ, EMBAIXADOR DA CENEZUELA

o início de seu governo, o presidente Lula já era muito próximo ao presidente Hugo Chávez, e a relação, aparentemente, se intensificou com os anos. Mas esse movimento foi constante ou podemos encontrar momentos de real turbulência entre os dois países, durante a gestão Lula?

Foram oito anos muito intensos na relação. Na realidade, essa aproximação começou já com Fernando Henrique Cardoso. O presidente Chávez sempre nos lembra que quando foi eleito, em 1998, antes de tomar posse ele pediu autorização ao então presidente, tomou um avião e veio a Brasília e a Buenos Aires. É claro que, com a entrada do presidente Lula, essa aproximação foi acelerada. Hoje, temos uma agenda muito forte e inédita — inclusive para o Brasil — de cooperação bilateral e regional, com iniciativas como a Unasul, o Banco do Sul, a Celac (Comunidade de Estados da América Latina e Caribe). A partir do segundo mandato do Lula, o processo se intensificou ainda mais: estabelecemos um mecanismo de reuniões trimestrais entre os presidentes, que está ajudando bastante a avançar com todos os projetos que temos.

Os senhor acredita que essa aproximação bilateral e regional foi impulsionada pela afinidade entre os dois presidentes ou era um caminho que seria feito de qualquer maneira?

Creio que foi uma conjuntura de vários elementos. Todo isso é fruto dos seus povos e de seus líderes. Talvez os líderes hoje se pareçam mais com seus povos. O presidente Lula sempre lembra que, quando era sindicalista, tinha mais contato com os sindicatos da Europa do que da América Latina, e essa contradição mostra que hoje houve uma tomada de consciência. Além disso, há uma realidade no mundo que é a formação de blocos na Europa, na Ásia. Então, ou nós nos unimos, ou realmente podemos continuar na periferia. Mas o presidente Chávez também tem uma formação, uma cultura bolivariana, e cremos na união e na integração deste continente. Uma geração de líderes políticos também apostou na integração sul-americana e, a partir daí, tomou-se uma série de iniciativas.

Na sua opinião, o presidente Lula também abraçou esse ideal bolivariano em seu mandato?
Sim, claro.

Nesse contexto de integração, foi criado em 2008 o Conselho de Defesa da Unasul. Qual a real função de um órgão como esse na América do Sul?

Se temos um processo de aproximação e integração econômico, político, não podemos deixar de fora a defesa. Este continente está em construção para existir como um bloco, então a defesa também é importante.

Um telegrama da embaixada americana em Brasília, datado de 2008 e divulgado recentemente pelo site WikiLeaks, revela que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, teria justificado a criação do conselho como um meio para “enquadrar a Venezuela e outros países da região em uma organização comum que o Brasil possa controlar”. Como o governo venezuelano recebeu essa visão?

É muito difícil opinar sobre especulações, porque estamos falando aqui de uma nota de um embaixador que conta o que teria sido dito a ele. Não podemos responder ou opinar a partir daí. A questão é que nós temos apoiado e respaldado o Conselho de Defesa, e o ministro Jobim teve um papel muito importante na construção desse espaço.

O mesmo telegrama revela que Jobim teria classificado a Venezuela como uma nova ameaça à região. Isso gerou lgum pedido de explicações?

Não aconteceu nada. Nem houve telefonemas. A última vez que conversamos com o ministro Nelson Jobim foi para tratar da ajuda humanitária à Venezuela, no marco do terrível momento que estamos passando por conta das chuvas.

Um outro documento da embaixada americana, deste ano, afirma que o governo brasileiro teria se oferecido para intermediar uma aproximação entre o governo dos EUA e o presidente Chávez.

O Brasil chegou a fazer a mesma proposta ao lado venezuelano?

Não tenho conhecimento disso.

A Venezuela acredita que uma maior aproximação do Brasil com os EUA, como preveem alguns para o governo Dilma, poderia afetar a autonomia da região?

Não. Primeiro é preciso lembrar que não podemos opinar sobre as escolhas que são feitas pelo Brasil. Mas os tempos mudaram neste continente. Eu estava analisando a história diplomática entre Brasil e Venezuela, e o que encontrei é que o primeiro presidente brasileiro que visitou a Venezuela foi em 1979, há 31 anos. Imagina que a visita oficial de um presidente brasileiro a um vizinho, com o qual divide uma grande fronteira, foi apenas em 1979? Perceba como avançamos na última década, e quanto os presidente Chávez e Lula se reuniram, se não em reuniões bilaterais, em reuniões do Mercosul. E creio que é um processo irreversível.

Então Dilma terá, inevitavelmente, de continuar com os olhos voltados para a região?

É difícil de opinar, mas tudo indica que vá se manter essa política. Creio que seria muito difícil frear ou reverter essa integração.

Como pudemos ver pelas declarações do presidente Chávez logo após a eleição de Dilma, inclusive no Twitter, ele ficou muito feliz com o resultado...

É preciso saudar simplesmente o fato de ter sido eleita uma mulher no país mais importante da América do Sul. E o presidente Chávez tem muito respeito, muito apreço por ela, com quem pôde, nos últimos anos, ter muito contato.

A Venezuela espera um papel protagonista da presidente Dilma em temas que possam provocar atritos na região?

Estamos em uma fase na qual o importante é aprofundar e seguir institucionalizando todos os espaços que surgiram nos últimos anos — a Unasul, a Celac. E, sem dúvida, é preciso que o Brasil participe disso.

Depois de mais de quatro anos esperando, a Venezuela está finalmente próxima de ingressar no Mercosul. Ainda é bom negócio para a Venezuela?

É bom negócio para todos, na verdade. Temos muito respeito pelo tempo dos outros países. Está ocorrendo um processo no Paraguai, e estamos na expectativa de que ele termine logo. O Paraguai está com a presidência temporária do Mercosul, e tomara que tenhamos a notícia ainda nesse período (até julho). No Brasil, também levou tempo para que a entrada da Venezuela fosse aprovada no Congresso, mas nesse tempo nos conhecemos e entendemos melhor. É um processo de aprendizagem para todos.

O senhor espera que projetos como a refinaria Abreu e Lima (em Pernambuco) e o Gasoduto do Sul vão, de fato, deslanchar no governo Dilma?

A refinaria só depende de um tema técnico-financeiro. Mas vai acontecer, estamos terminando umas fórmulas financeiras e não há nenhum problema com a refinaria. Já o gasoduto, bem… tudo na América do Sul está tudo por ser feito. Mas temos, juntos, um grande potencial energético. Como disse a presidente (argentina) Cristina Kirchner, em Foz do Iguaçu, o ingresso da Venezuela será a equação energética para o Mercosul e para o continente. Há muitos desafios e projetos importantes para fortalecer este continente, e os primeiros beneficiados serão os povos.

O senhor citou a forte agenda bilateral que temos hoje. Quais projetos estão envolvidos nessa agenda?

Importantes agências e instituições brasileiras estão cooperando com a Venezuela hoje: a Embrapa, a Caixa Econômica Federal, a ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Isso é inédito. No caso da Embrapa, temos uma parceria sobre desenvolvimento agrícola, para ter soberania alimentar na Venezuela, aproveitando toda a experiência extraordinária da Embrapa. Já a ABDI tem ajudado no processo de industrialização, enquanto a Caixa tem dado apoio ao processo de “bancarização”. Uma grande parte da população na Venezuela não tinha conta bancária, porque durante muito tempo o sistema bancário foi muito neoliberal. Também há um grande esforço para aproximar o sul da Venezuela e o norte do Brasil. Hoje, pode-se ir de Manaus a Caracas de carro, mas não de avião — é preciso ir até São Paulo.

A Assembleia Nacional venezuelana acaba de aprovar a lei que dá ao presidente o poder de governar por decreto por 18 meses. Isso não podecomprometer a democracia?

Quem conhece a realidade venezuelana sabe que a principal bandeira do presidente Chávez e da Revolução Bolivariana é o aprofundamento da democracia. A democracia venezuelana não corre nenhum risco por conta da aprovação da Lei Habilitante, pelo contrário: é um mecanismo contemplado na Constituição precisamente para fazer frente a situações extraordinárias, como a que o país está vivendo atualmente, produto de fortes chuvas e inundações que deixaram mais de 133 mil prejudicados.

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